Obituário - Devaneios de uma alma sombria #5




Toques enluvados. Ventos frios. Sua carne pelada. Os pelos pareciam não sentir cada toque, não se eriçavam. Nem mesmo sussurravam algo ao seu cérebro. Seu ouvido parecia escutar apenas o silêncio gritante. Boca entreaberta. Estava molhado. Seu cabelo penteado para trás. Seus olhos abertos, porém cegos. De certa forma. Suas mãos e pés imóveis como os de uma estátua. Que lugar estaria ele? Não fazia diferença agora.
Ele veria seu carrasco, se conseguisse: era um homem magro, suas costelas protuberantes. Sua pele negro ébano brilhava. O homem vestia branco, próximo a luz parecia ainda mais brilhante. Ele não o via, pois estava morto. Seus olhos que um dia suportava a cor castanha agora estampava o mais opaco cinza. Ele sentiria o frio que fazia na sala de autópsias, seu corpo nu na maca gelada. O homem olhava dentro de suas pupilas vazias, arregaçando as pálpebras com os dedos enluvados. Por sorte – ou azar – também não sentia cheiro algum. O odor de cadáveres recém-chegados seria insuportável se estivesse respirando. Ventos do ar condicionado flanavam sobre seu nariz, mas ele nada sentia.
Havia uma maldita claridade que atormentaria sua visão, parecia luz de dentista, mas o homem em breve rasgaria seu tórax e enxergaria todo seu interior. Literalmente. Uma caneta desenhava em seu peito, em tinta preta, algo em forma de Y. Lâminas pareciam dançar uma canção fúnebre próximo a maca.  Enquanto isso o legista retirava um bisturi e avaliava o corpo a sua frente. Tocava dos ombros ao peito. A tinta marcando o veredicto.
"Reza a lenda que quando uma pessoa morre com os olhos abertos, ou é porque morreu querendo ver alguém que gosta ou por vingança, então resolvi – como estava muito tempo sem escrever aqui no blog, por um bom motivo – escrever sobre algo que eu adoro (autópsias) englobando uma coisa que ouço muitos dizerem por ai. Dizem ainda que quando a pessoa que o morto gostava e queria ver aparece para vê-lo ele simplesmente fecha os olhos.
Espero que tenham gostado."
 
Boa noite!!!

Preso dentro de mim - Devaneios de uma alma sombria #4





Um sorriso. Ou a falta dele. A companhia de uma pessoa distante ou de uma que não existe mais.

Como um dia nublado e frio, talvez até chuvoso, aqueles ventos em nossos cabelos nos aproximam de cada partícula no mundo. E nos distancia ao mesmo tempo. Queremos só o silêncio de nossas mentes barulhentas e sua bagunça. Cada sorriso falso nos alerta da verdadeira mentira dos que nos cercam.

Um abraço. Um beijo. Um soco de realidade no rosto em fúria, queimando. Cada olhar brilhante se mostra opaco diante de nossa tristeza. E aqueles velhos sorrisos tristes se agarram em nossa boca como um beijo amaldiçoado. Triste. O ódio é ardente como a marca no rosto, latente. A cada passo no frio do tempo beira ainda mais a morte por dentro. Adentrando aquele coração que um dia palpitava ‘amor’.

“Hoje eu estava conversando com um amigo sobre a depressão e o que ela nos faz de ruim. E também sobre o que ela nos inspira, por isso resolvi começar esse post dessa maneira. E encerrar de outra. Tive uma inspiração boa sobre uma coisa ruim e a transformei em algo maior.”

No fim da tarde o sol aparece e trás consigo o calor, o mesmo que nos faltou nos dias de escuridão. A cor e o som retornaram trazendo para nossas malas o peso para nos fincar sobre o chão. Nada pelo que passamos desaparecerá, pelo contrário, irá continuar até que saibamos o que sacar das bagagens. A coisa mais importante: a vontade de viver.

De sentir-se vivo e de agarrar com todos os dedos cada sentimento perdido pela ‘crise existencial’, por seu momento de ‘pause’ no jogo. A vida tem disso, essa coisa de abalar-nos profundamente a ponto de nos congelarmos. Mas ai o sol chega.

E a noite por fim retorna fria.

Desta vez você está sob um guarda-chuva preto com uma blusa de frio escura, mas dentro de seu peito se encontra uma chama que lhe esquenta a alma tão profundamente a ponto de ignorar o ‘mal’ tempo. As coisas – incluindo pessoas – a sua volta estarão mais parecidas como as pedras de uma lareira. Imóveis. Quietas. E você queimando como as crepitantes chamas daquela mesma lareira.

“Acho que as analogias servem um pouco pra isso, ajudar as pessoas a se entenderem internamente com mais facilidade, além de ensinarmos que o tamanho das coisas é relativo. O sentimento, o sorriso, as pessoas, as palavras, as riquezas, e todo o resto. Que não precisamos de um romance pra entender toda uma vida. Não é num poema que entenderemos o sentido disso tudo. Desse universo imenso do qual nós só enxergamos o que queremos. O que nos é possível ver. Nós, meros seres humanos, temos essa desvantagem contra o tempo. Somos minúsculos em comparação com nossos sentimentos e às vezes eles nos controlam por inteiro. É quando deixamos de existir e reina somente a ‘casca’ e o que cuspimos boca afora. Maldita depressão! “

O sonho da morte de Cassandra - Ato V

O sonho da morte de Cassandra

 Ato V

 

"Ela estava me olhando bem ao lado do jazigo. Estava lá em pé toda de branco, eu via a sua aura, uma linda mistura de deusa com morte."

 

Estava no velório da minha mãe. Sabe, foi meio estranho vê-la dentro do caixão, ela que sempre me dizia que tinha vitalidade para viver séculos. Que não me deixaria por nada e eu acreditava, até agora. A ficha ainda não caiu, eu não creio que ela se foi. O tempo estava chuvoso quando eles a transportaram para dentro do jazido da família. Aquele grande amontoado de pedras trabalhadas em azul escuro. A chuva prevalece em todos os funerais, parece até mesmo um acompanhante eterno dos defuntos. Pergunto-me até quando minha mente verá essas coisas e achará normal – corpos, sangue e o negro – essas trevas que me perseguem aonde quer que eu esteja. Falando nisso, eu também vi o gato dela, não o via fazia treze anos, desde que ele havia sido envenenado pelo nosso vizinho.”
 Ele ainda andava graciosamente delirante sobre o jazigo azul, seus pelos encharcados até combinavam com os cabelos de Cassandra. Cada miado rompia fendas no coração da garota, ela percorria seus pensamentos em busca de um consolo para aquele momento de dor e angustia. Suas lágrimas se fundiam ás águas da chuva.
Quando chegou ao velório todos olharam pra ela. Os parentes conhecidos e estranhos, com olhares de pena e dó. Ela odiava tudo isso. O povo que naquele momento fingiam importância com a garotinha que acabara de perder o ente mais querido, um seio dolorido e por baixo dele um órgão rasgado em pedaços. Todos que ali estavam tinham uma expressão ruim – ironicamente – pobres criaturas desejosas por mais um corpo num cemitério para que possam se sentir bem e pensar que fizeram algo de bom pra alguém quando na verdade a fizeram se sentir ainda mais incapaz de proteger essa pessoa querida.
“Ela estava me olhando bem ao lado do jazigo. Estava lá em pé toda de branco, eu via a sua aura, uma linda mistura de deusa com morte. Eu a vi me olhando e me chamando com aquele olhar angelical e materno que ela nunca me dera em vida. Estava ali bem na minha frente em uma imagem muito retorcida do que se via, sinceramente parecia mais um fantasma. Estávamos frente a frente uma da outra. Agora ela caminhava em minha direção lentamente, pálida como uma folha em branco. Aqueles olhos gélidos eram tão frios quanto seu toque em minhas bochechas. Seus lábios me diziam ”por favor, venha até mim”, mas eu não entendia e aquele negrume felino roçava meus pés trançando um caminho entre minhas pernas que não fazia sentido. Ele dava voltas e mais voltas, mas não devia mesmo fazer nenhum sentido aliás era um animal. Eu só gosto de gatos porque são fofinhos, nada mais.
Dando um passo para trás ela recuou, depois retornou para a posição de origem ao lado de seu corpo deitado dentro duma caixa de madeira envernizada. Num piscar de olhos ela estava em minha frente me tocando com aqueles dedos secos como um caule velho e gelado feito dedos de picolé. Achei que iria congelar, em vez disso fiquei ali parada admirando-a. Ela se inclinou e me deu um beijo na testa dizendo “adeus minha pequena! Adeus!”. Ai eu acordei e fiquei admirando minha janela e minha cortina vermelha sangue...”
 

 


O sonho da morte de Cassandra - Ato IV

O sonho da morte de Cassandra

 Ato IV

 

"Meu coração corria mais que os esquilos da floresta, agora todos adormecidos. Eu gritava, mas ninguém me ouvia, nem mesmo eu me escutava."

 

" A sombra enegrecida do acampamento era evidente. Nenhum dos meus colegas surgia para me salvar daquela enrascada - uma armadilha de urso - que estraçalhava o meu pé e eu via sangue por todos os lados e minha carne estava escura. Veias já não enviavam sangue, mas sim algum tipo de óleo roxo e escuro. Meu coração corria mais que os esquilos da floresta, agora todos adormecidos. Eu gritava, mas ninguém me ouvia, nem mesmo eu me escutava. Minha voz saia como um guincho quase imperceptível ao longo do imenso bosque. Aquela escuridão me cegava e o medo se escondia na minha nuca cortando a coragem como uma navalha afiada. Meus olhos não viam nada além de arvores negras e sombras selvagens.
As barracas de acampamento caídas no chão de terra molhada dava uma visão de morte total, uma desolação de um animal em fúria que sai destruindo tudo a sua frente. Eu via corpos por todo o canto, espalhados sobre o terreno pisoteado e manchado se sangue. Minha amiga Anna estava pendurada pelo pescoço numa arvore escura e sem folhas, toda seca. Numa forca tenebrosa ela me olhava. Seu oco e vazio rosto mostrava o meu destino, aqui presa nessa armadilha dos infernos. Um metal gelado prendia minha perna e o frio me lambia dos pés a cabeça como se fosse uma noite de inverno. Queria estar em casa tomando uma xícara bem grande de chocolate quente, em vez disso, aqui estou eu, presa num cemitério ao ar livre cheio de morte rondando-me a espera da minha hora. O oco onde antes continham os olhos de Anna me seguia, me vigiava e prendia minha atenção, era como se tivéssemos conversando. Eu com minha boca carnuda e Anna com a sua parcialmente arrancada. O ar estava melancólico e ela dava uma visão fantasmagórica com seu roupão branco manchado de sangue, borrifando ainda de suas veias o que lhe restava. Suas entranhas e órgãos pendiam por além do corpo, formando assim a morte mais terrível que já presenciei.
Seu corpo estava fétido, sua cor pálida chamava os meus fantasmas para dançarem. Uma morte esplêndida sorria para mim que retribuía o sorriso involuntariamente. Depois de uma leve piscadela eu me via em outro lugar. Dessa vez um bem aconchegante, estava numa barraca muito ampla e bonita, porém a minha frente outro corpo pendia morto por uma corda. Ele girava e girava como um ventilador quebrado. Seu rosto também me era familiar, era uma pessoa muito querida. Meu namorado jazia com um corte profundo na garganta, pareciam que lhe cortaram de orelha a orelha. Num súbito solavanco eu acordei novamente, que sonho perturbador eu tive, e diferente, bem diferente. A morte parecia me rondar cada vez mais de perto. "


O sonho da morte de Cassandra - Ato III

 O sonho da morte de Cassandra 

 Ato III

 

"Os corvos negros circulavam sobre minha cabeça e crocitavam “morte, morte, morte”, porém eu não jazia naquele momento"

 

A chuva que caia lavava o sangue nos meus cabelos, escorrendo para meu rosto e morrendo no chão empoçado da rua sulcada, meu corpo estava todo ensopado numa mistura de água e sangue, talvez eu já estivesse morta e deitada naquele imundo recinto, um sonho não muito perfeito, já que ninguém que eu conheça deseja sonhar com sua própria morte. O céu, num clichê mórbido, chorava mais forte a cada passo que eu dava e eu não sabia pra onde ir. Estava presa dentro de um labirinto negro e escuro, repleto de silêncio e um cheiro fétido que eu não conseguia distinguir, me pareceu com uma mistura de decomposição e carne vencida há anos. Os corvos negros circulavam sobre minha cabeça e crocitavam “morte, morte, morte”, porém eu não jazia naquele momento.
Era dia, mas não havia ninguém na rua. Enquanto eu vagava por um lugar sem vida alguma, lá em cima no céu, eles ainda pairavam em círculos acima da minha cabeça ensanguentada. Os fios loiros e emaranhados sobre meus ombros me faziam tremer de frio e os pelos da minha nuca estavam eriçados, nada como um cão preto para me dar um susto, emergindo das sombras ele salta para cima de mim como uma fera atroz e sedenta por sangue. Eu corri do animal na primeira oportunidade. Ele sequer se moveu, pelo contrário, ficou me olhando com aquele olhar selvagem de um maníaco matador.
Eu me via novamente num beco sem saída neste exato momento após a fuga do cão, na minha frente via uma enorme parede de três metros de altura em concreto e pedras enormes. Nela estava escrito meu nome com letras em vermelho vivo, um profundo escarlate sanguinário, abaixo da muralha de pedras dormia um homem, talvez um morador de rua e ao seu lado outro estava em pé com um cutelo de açougueiro na mão direita. Numa estocada o homem em pé arranca a cabeça do outro e a lança em minha direção. A partir daí foi tudo muito rápido, quando olhei para baixo vi que não era um rapaz deitado próximo ao muro, más sim uma moça, eu, e minha cabeça estava toda ensopada de sangue assim como meu corpo, e o homem do cutelo estava agora na minha frente. “
E a psiquiatra olha fixamente para Cassandra abismada com a viagem da moça dentro do seu próprio consciente, um devaneio em profundos sonhos obscuros duma mente conturbada. Hillary presencia um dos sonhos da morte de Cassandra.