“Estava no velório da minha mãe. Sabe, foi meio estranho vê-la
dentro do caixão, ela que sempre me dizia que tinha vitalidade para viver
séculos. Que não me deixaria por nada e eu acreditava, até agora. A ficha ainda
não caiu, eu não creio que ela se foi. O tempo estava chuvoso quando eles a
transportaram para dentro do jazido da famÃlia. Aquele grande amontoado de pedras
trabalhadas em azul escuro. A chuva prevalece em todos os funerais, parece até
mesmo um acompanhante eterno dos defuntos. Pergunto-me até quando minha mente
verá essas coisas e achará normal – corpos, sangue e o negro – essas trevas que
me perseguem aonde quer que eu esteja. Falando nisso, eu também vi o gato dela,
não o via fazia treze anos, desde que ele havia sido envenenado pelo nosso
vizinho.”
Ele ainda andava
graciosamente delirante sobre o jazigo azul, seus pelos encharcados até
combinavam com os cabelos de Cassandra. Cada miado rompia fendas no coração da
garota, ela percorria seus pensamentos em busca de um consolo para aquele
momento de dor e angustia. Suas lágrimas se fundiam ás águas da chuva.
Quando chegou ao velório todos olharam pra ela. Os parentes
conhecidos e estranhos, com olhares de pena e dó. Ela odiava tudo isso. O povo
que naquele momento fingiam importância com a garotinha que acabara de perder o
ente mais querido, um seio dolorido e por baixo dele um órgão rasgado em
pedaços. Todos que ali estavam tinham uma expressão ruim – ironicamente – pobres
criaturas desejosas por mais um corpo num cemitério para que possam se sentir
bem e pensar que fizeram algo de bom pra alguém quando na verdade a fizeram se
sentir ainda mais incapaz de proteger essa pessoa querida.
“Ela estava me olhando bem ao lado do jazigo. Estava lá em pé
toda de branco, eu via a sua aura, uma linda mistura de deusa com morte. Eu a
vi me olhando e me chamando com aquele olhar angelical e materno que ela nunca
me dera em vida. Estava ali bem na minha frente em uma imagem muito retorcida
do que se via, sinceramente parecia mais um fantasma. Estávamos frente a frente
uma da outra. Agora ela caminhava em minha direção lentamente, pálida como uma
folha em branco. Aqueles olhos gélidos eram tão frios quanto seu toque em minhas
bochechas. Seus lábios me diziam ”por
favor, venha até mim”, mas eu não entendia e aquele negrume felino roçava
meus pés trançando um caminho entre minhas pernas que não fazia sentido. Ele
dava voltas e mais voltas, mas não devia mesmo fazer nenhum sentido aliás era
um animal. Eu só gosto de gatos porque são fofinhos, nada mais.
Dando um passo para trás ela recuou, depois retornou para a
posição de origem ao lado de seu corpo deitado dentro duma caixa de madeira
envernizada. Num piscar de olhos ela estava em minha frente me tocando com
aqueles dedos secos como um caule velho e gelado feito dedos de picolé. Achei
que iria congelar, em vez disso fiquei ali parada admirando-a. Ela se inclinou
e me deu um beijo na testa dizendo “adeus
minha pequena! Adeus!”. Ai eu acordei e fiquei admirando minha janela e
minha cortina vermelha sangue...”